A trágica sensação do sonho perdido

BRASÍLIA - Era ainda um adolescente quando vim a Brasília pela primeira vez e vi suas entranhas. Vi meus conterrâneos, batizados de candangos, varando a noite para aprontar a nova capital até o dia 21 de abril de 1960. Juscelino Kubitschek, seu criador, tinha certeza: ou ele fazia a mudança ou o sonho de Dom Bosco (e seu) iria para as cucuias.
Esse espírito empreendedor, dinâmico, parece hoje sepultado no mosaico urbano de uma cidade de asas caídas. Cada vez que venho a Brasília sou tomado da trágica sensação do sonho perdido. Aqui tudo gira em torno do santo poder. É uma roda viva sem pudor, tão estonteante que doma e prostra antigos guerreiros.
Ao contemplar sua nova ponte sobre o Paranoá, do vigésimo- sexto andar de sua solitária torre, no conjunto arquitetônico do Congresso, diviso as mansões do Lago Sul, o sítio que se deseja paradisíaco. Posso estar enganado, redondamente enganado, mas a paisagem lembra uma civilização inerte, onde os seres se acham compensados e nada mais aspiram.
Inércia assumida
Essa imagem se espelha na vidraçaria da Praça dos Três Poderes. O traçado urbano - cortado por avenidas de rolagem rápida - colabora para isso. Os filósofos e os analistas muito profundos ainda não lograram - se é que tentaram - penetrar sua alma escondida. O que se constata a olho nu é que seu clima seco é paralisante - que o digam os barbudinhos que, segundo diagnóstico autocrítico, estão batendo cabeças e cultuando a doutrina do Chacrinha - que vinha para confundir.
Também pudera: em política, o "me engana que eu gosto" contamina primeiro os áulicos, até mesmo os do baixo escalão. O sentir-se qualquer coisa do poder, mesmo que seja um periquito rouco, já faz a cabeça. Porque o crachá não é bombril, mas tem uso múltiplo. E como a platéia entrou o ano em estado de graça, qualquer prazer a diverte.
São passados quase noventa dias do novo governo federal e o imobilismo campeia em meio à triste constatação de que ele se implantou sem a panacéia que alardeava aos quatro ventos. Sem inspiração e derrotado pelos demônios que prometia exorcizar, apegou-se aos seus remédios, de validade vencida, e assumiu o audacioso desafio de ser mais realista do que o rei.
Por conta dessa metamorfose, ninguém está entendendo nada: nem o povo, nem os observadores, nem os políticos e nem mesmo os homens do poder. Como ninguém entende nada, ninguém sabe o que há de verdadeiro no novo discurso e na choradeira do príncipe, nada se faz ou se se tenta fazer é só para contrariar.
Neste momento, os petistas mais coerentes estão tomando maracujina para engolir goela abaixo o projeto de transformação do Banco Central no rei da cocada preta, tal como foi acertado com os homens do são "mercado", capitaneados pelo são Meireles, o banqueiro que, em troca, abriu mão do seu primeiro e glorioso mandato federal. Os antigos desafetos neoliberais com certeza darão uma mãozinha e quem vai ficar mal na fita será a turma dos petistas apelidados de folclóricos pela deputada comunista Jandira Feghali.
As vozes da verdade
O que compensa, porém, é saber que quem sabe das coisas não mete a viola no saco. Nesta terça-feira, o advogado Cid Heráclito Queiroz passou em revista, com conhecimento de causa, e de forma honesta e incontestável, toda a verdadeira história do sistema de aposentadoria, desde 1835, quando o Regente Feijó, em nome de Dom Pedro II, instituiu o primeiro montepio de servidores, com o desconto de 5% dos seus vencimentos.
Veja um trecho de seu artigo, publicado em "O Globo": "Quanto ao Regime Geral:
1) a motivação da reforma não pode ser meramente financeira: tem de curvar-se a razões sociais;
2) não há déficit no Regime Geral da Previdência Social: em 2002, o montante das contribuições de empregados e empregadores (R$ 70,5 bilhões) foi superior à despesa com aposentadorias e pensões dos reais segurados da previdência (cerca de R$ 69 bilhões);
3) o déficit contábil decorre do fato de a receita previdenciária estar sendo utilizada para custear benefícios assistenciais a seis milhões de trabalhadores rurais, a idosos e a deficientes físicos (R$ 18,8 bilhões), que nunca contribuíram para o sistema, sendo, assim, beneficiários do maior programa de redistribuição de renda, em todo o planeta;
4) o déficit é custeado com menos de 20% da receita (R$ 100 bilhões) da Cofins, CSLL e CPMF, criadas justamente para financiar toda a seguridade social;
5) os segurados não podem suportar o confisco de seu patrimônio, por isso as contas têm de ser separadas;
6) por outro lado, a receita poderá ser aumentada se (a) estimulada a adesão de trabalhadores da economia informal e (b) adotada a cobrança amigável (concebida há 20 anos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e aplicada com êxito no Município do Rio de Janeiro) da imensa dívida ativa do INSS (R$ 100 bilhões).
No que tange ao Regime de Previdência dos Servidores Públicos: ao contrário do que se afirma, os servidores sempre contribuíram (5% sobre a remuneração) para custear a pensão a seus dependentes, desde o decreto de 10 janeiro de 1835, do Regente Feijó (na menoridade de D. Pedro II), que criou o Montepio Geral Econômico dos Servidores do Estado, gerido pelos próprios segurados; em 1926, Washington Luiz transformou o Montepio no Instituto de Previdência, com a diretoria nomeada pelo governo; Vargas, em 1931, estatizou o Instituto, rebatizado, em 1934, como Instituto Nacional da Previdência, que passou a prestar assistência médico-hospitalar, e, em 1938, criou o Ipase, absorvido, em 1966, pelo INPS.
De 1835 a 1966, o produto da contribuição dos servidores foi sendo acumulado no Ipase, que geria os fundos, no custeio das pensões, na assistência médico-hospitalar, no financiamento de habitações, em seguros etc., e possuía um rico patrimônio (o maior e mais bem equipado hospital da América Latina, os edifícios de sua sede no Rio e das delegacias nos estados e expressivas reservas técnicas).
Tudo isso, na verdade, foi confiscado aos servidores públicos e diluído no caldeirão do antigo INPS, hoje INSS. Também foi confiscada dos servidores, pela Constituição de 1988, a receita do Pasep, a fim de formar um orçamento paralelo. A partir da referida Carta, os servidores vêm contribuindo, para fins de aposentadoria (11% sobre a remuneração), mas o empregador (poder público), que deveria recolher o dobro, continuou indevidamente isento (isenção de cerca de R$ 100 bilhões em 14 anos).
A receita e a despesa não podem ser comparadas, porque esta envolve aposentadorias e pensões relativas a cerca de 600.000 celetistas, incluídos pela Carta de 1988 no regime jurídico único, sem que o INSS devolvesse ao Tesouro Nacional (como ocorreu com estados e municípios) o produto das contribuições recolhidas durante vários anos.
Os servidores civis do Executivo contribuíram, em 2002, com R$ 4,3 bilhões, a despesa com aposentadorias e pensões foi de R$ 14,6 bilhões e o déficit não seria grave (R$ 1,7 bilhão) se o empregador houvesse contribuído (R$ 8,6 bilhões)".
Conscientes da mais cristalina legitimidade dos seus direitos, servidores, trabalhadores da ativa e aposentados estão levando ao Congresso sua disposição de irem às últimas conseqüências para impedir a consumação do golpe perverso, agora revelado pelo ministro Berzoini.
Já há uma proposta de paralisação no próximo dia 8. E muita vontade de briga, desmascarando perante a opinião pública todos aqueles que trocaram seus discursos pelas mordomias dos podres poderes.

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