Por trás do teto da aposentadoria

Eu queria dedicar esta coluna ao repúdio de toda humanidade à mais cínica das guerras de toda a história universal. Estive com outros milhares de cidadãos do Rio de Janeiro na manifestação de sábado - há muito não via tanta gente, numa composição tão heterogênea. Nem as habituais tentativas de capitalização política dos mesmos "estrelos" de sempre desfigurou o sentimento genuíno de indignação.
A passeata teve o mesmo perfil de uma escola de samba: dezenas de "alas" que não se conheciam, mas que observavam uma cadência intrinsecamente harmônica. No Brasil e em todo o mundo, no mesmo sábado, multidões gritavam na mesma língua: chega de prepotência, covardia e pirataria de Estado.
Mas não posso abandonar a seqüência crucial de outro combate contra o cinismo e a ignomínia. Essa conspirata macabra contra o direito à aposentadoria digna pode não ter sido encomendada pela indústria de guerra ou movida pela cobiça do petróleo. Mas os seus manipuladores são farinhas do mesmo saco. E se movem segundo as mesmas vorazes ambições. Como já consideram o mundo pervertido moralmente e globalizado econômica e politicamente, incursionam levianamente sobre o butim do Estado brasileiro, numa manobra esperta para corroer as defesas imunológicas da Nação.
Quem impõe o "teto"
Enquanto concentram as discussões sobre as aposentadorias e pensões dos servidores, tratam os benefícios humilhantes do INSS como fatos consumados. Quer dizer, os "especialistas" conseguem esconder o principal: não há razão honesta para explicar o teto (cada vez mais próximo do piso) vigente para os celetistas. Essa conversa de que o limite é a salvação da lavoura não passa de uma deslavada impostura.
Os governos anteriores minguaram os benefícios por imposição do patronato. Foi mais uma manobra sorrateira para reduzir o salário real dos trabalhadores. O INSS pode pagar um teto muito maior aos celetistas, desde que o conjunto dos descontos não esteja sujeito a tetos. Quando se fixa o limite do benefício, alcança-se também o desconto e, por tabela, a contrapartida patronal. Se um celetista que ganha R$ 5.000,00 descontasse R$ 550,00, o empregador teria que recolher mais R$ 1.000,00. E o benefício da aposentadoria só reverte para o empregado.
Para os empresários, o trabalhador brasileiro tem um custo indireto muito elevado. Na "reforma trabalhista", igualmente prometida, pretende-se reduzir esse custo. O ministro Palocci já jogou o primeiro balão de ensaio, com a proposta de substituir a contribuição previdenciária, vinculada ao salário, por outra, calculada em parte em função do faturamento. Isso como se o Brasil não fosse o paraíso da sonegação fiscal.
Quando se queixam com cálculos percentuais do custo indireto em relação aos salários, os empresários esquecem que no Brasil se remunera muito mal a mão-de-obra. Hoje, está em discussão o mínimo em torno de 65 dólares, um dos mais baixos do mundo. Proporcionalmente, devemos ter um salário médio de 300 dólares. A folha de pagamento de pessoal representa 14% do custo de uma empresa. Aqui, a distância entre as maiores e a rendas mais baixas é estapafúrdia.
Aceita-se como fato consumado a brutal concentração de renda e, ao invés de detoná-la, oferece-se ao povo migalhas compensatórias destinadas tão-somente a preservar a tranqüilidade dos afortunados (vide fala do sr. Graziano).
O que se pretende hoje é consolidar a decadência do salário real, já minado pelo sucateamento da saúde e do ensino públicos e pela elevação de despesas com habitação e locomoção, jogando quase que exclusivamente sobre o trabalhador, de forma direta, através da compra de planos privados, a aposentadoria suficiente. Isso ocorre à semelhança dos planos de saúde, tornando "complementar" a previdência pública.
A previdência é viável
Concretamente, é mais do que viável uma previdência administrada honestamente com eficiência e assentada numa filosofia que reconheça o direito de todos à uma velhice digna.
Quando se fala da relação entre trabalhadores na ativa que contribuem e aposentados, incide-se em novas manipulações. Quem deixa de contribuir, hoje, na verdade, é a massa que ganha muito mal, na informalidade, ou trabalha em ramos de sonegação crônica, como a construção civil.
É o exército dos excluídos da Previdência Social - não contribuem, mas também não terão direito à aposentadoria correspondente. Alistar-se-ão, porém, nas fileiras dos socorridos pela assistência social aos desvalidos, onerando a mesma fonte para a qual não descontou.
A taxa de excluídos do sistema previdenciário em relação à população ocupada no setor privado cresceu de 53%, em 1985, para 62%, em 1989, o que significa mais de 40 milhões de pessoas. Entre os 35 milhões de brasileiros mais pobres estão excluídos da Previdência 96%. Esses excluídos se encontram principalmente nos grandes centros urbanos.
Nos últimos anos, a praga de "cooperativas" de mão-de-obra acarretou mais prejuízos para a arrecadação previdenciária.
Sob os olhares cúmplices e até com certo estímulo oficial, essas ferramentas de "redução do custo trabalhista" reduziram ainda mais o "salário real" e livraram os empregadores de sua contrapartida nos descontos, com impacto negativo sobre a relação ativos/inativos.
Esdrúxula é a situação da aposentadoria rural, que chega a R$ 14 bilhões dos R$ 100 bilhões anuais de despesas do INSS. De caráter eminentemente assistencial, não reflete arrecadação no setor: dos 6 milhões de imóveis rurais, apenas 800 mil registram algum tipo de contribuição aos cofres públicos.
A esse logro, juntam-se renunciais fiscais e imobilismo diante dos devedores. A má fé é tanta que entre os devedores da previdência há estatais e órgãos públicos. Muitas prefeituras e empresas do interior não recolhem e fica por isso mesmo. Há ainda o salário "negociado": na carteira é um, por fora tem mais. Os mais otimistas dos cálculos estimam em R$ 150 bilhões o calote no INSS.
Segundo o procurador Carlos Alberto Aguiar, da Força Tarefa que apura fraudes na Previdência, de cada 10 benefícios concedidos no Rio de Janeiro, 5 são eivados de fraudes. Nesses casos, ao lado da ação das quadrilhas que operam com costas largas, há um fator de irregularidades "atávico": entre os assalariados mais pobres, é difícil reunir documentação para comprovar as contribuições (alguns chegam a tirar até 10 carteiras profissionais) e muitas empresas desaparecem sem deixar memória. No desespero, eles recorrem a patronos especialistas em fabricar comprovações e ainda se deixam seduzir pela possibilidade de receber mais do que teriam direito.
Para se falar em proporções, impõe-se distinguir valores de contribuições e de retorno. Isso quer dizer: se é verdade que a grande massa de aposentados gravita em torno do salário mínimo, não ocorre o mesmo, na medida semelhante, entre os que estão na ativa e descontam. Se não houvesse teto ou se este fosse bem maior, a quantidade de dinheiro arrecadado seria mais do que dobrada.

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