Eram felizes e não sabiam

Em artigo muito bem fundamentado, publicado semana passada, o presidente da Associação Nacional dos Servidores da Previdência Social, Paulo César de Souza, manifesta sua preocupação de que o "saco de maldades" idealizado pelo governo FHC seja mais uma vez usado contra os servidores e os aposentados. Ele ainda não tinha sabido que o novo governo adiou o mísero aumento de um funcionalismo que está com os vencimentos virtualmente congelados há 8 anos; nem mesmo que os novos sábios descobriram que esse reajuste só pode ser de 2,5%, ao contrário dos 4% previstos no Orçamento e dos 3,5% concedidos ano passado.
Também deixou de fazer comparações em relação às ilusões alimentadas, até porque ninguém podia imaginar que a mudança acalentada no fragor das lutas inolvidáveis fosse ser isso que se vê. Pois é. Por mais incrível que pareça - acredite se quiser - a proposta do amaldiçoado sociólogo para favorecer o sistema privado de previdência era "pinto" em relação ao que se pretende agora, em meio à arrogância, à barbárie e às afrontas ao regime de direito, pelo qual morreram muitos, e outros, como eu, pagaram o preço da prisão, do desemprego e da perseguição sistemática.
O direito adquirido
Com toda a sua assumida renúncia ao passado, com todo o seu cinismo britânico, FHC não ousou investir contra os direitos constitucionais pétreos. Pelo menos, a nível de sua proposta de "previdência complementar para os servidores", consubstanciada no Projeto de Lei Complementar 09. No artigo 5º, parágrafo 2º do seu projeto, o governo anterior estabelecia: "Os planos de benefícios serão oferecidos a todo servidor titular de cargo efetivo do patrocinador, ADMITIDOS A PARTIR DA PUBLICAÇÃO DA LEI DE QUE TRATA O CAPUT".
Já a proposta do atual ministro pega todo mundo agora, no meio do contrato, porque, sob o manto do FMI, a ordem é jogar a freguesia nas mãos da previdência privada, hoje o filé mignon do sistema financeiro internacional.
Para quem já combateu num regime de exceção, o que não é o caso da maioria da súcia parlapatona entronizada agora, a sangria dos direitos, sejam eles quais forem, é um péssimo agouro. Só mesmo a mescla de compromissos espúrios, paranóia generalizada e competência zero, pode produzir o escárnio. Aquele que tripudiar sobre o consenso cristalizado numa Constituição estará abrindo sua própria defesa e exporá todos a um novo império da lei do mais forte.
A mística do direito é condição essencial para a preservação da dignidade dos cidadãos. Até mesmo a ditadura demorou a ofendê-la, mormente nos tratados trabalhistas. Quando revogou a estabilidade dos dez anos prevista na CLT, o regime centurião teve o cuidado de criar o expediente da "opção".
Ao invés, agora, arma-se um rolo compressor muito mais perverso do que o saco de maldades dantes. Sua periculosidade é maior do que nos tempos áureos da Arena, porque o medo do desafio (ou os mesmos motivos de sempre) pôs todos legisladores no mesmo balaio, a serviço da metrópole internacional do ouro. Tamanha é sua voracidade que até mesmo o doutor Saulo Ramos, cabeça brilhante sempre prestimosa ao poder, assustou-se.
"Está em jogo algo de muito sério: o direito fundamental, que não pode sofrer alterações ditadas pelos altos e baixos do fluxo financeiro do sistema atuarial, isto é, da atuária" - escreveu, enfatizando: A tese de expectativa de direito, do ministro Carlos Velloso, parece não ser correta, embora tenha aquele gostoso propósito mineiro de apartar briga.
Nesta questão jurídica prefiro, com perdão dos que pensam diferente, a lição do professor Vicente Ráo, gênio do direito brasileiro, e escrita muito antes de todos estes debates: "O direito sujeito a termo inicial é um direito subjetivo perfeito, cujo início de exercício, entretanto, é retardado até o vencimento do termo: não é direito eventual, porque o decurso do tempo é certo e, pois, certa também é a verificação futura do poder de exercício inerente ao direito."
Não há dúvida, pois, que o servidor público tem direito adquirido à aposentadoria e à proteção constitucional correspondente inscrita no inciso XXXVI, do art. 5, isto é, direito essencial e perfeito. Submetido ao decurso do tempo, está apenas seu exercício e não sua aquisição. Expectativa de direito é outra situação".
Esquecendo a sonegação
O trágico em tudo isso é que quem esqueceu dos direitos subiu falando neles. E pior, está jogando pesado numa dublagem obscena. Enquanto seu realejo fala em privilégios, omite, na maior sem-cerimônia, a sonegação, as fraudes, as anistias fiscais indecentes.
Veja o que escreveu o líder dos previdenciários: "Também não se ouve nem se vê menção ao escabroso e escandaloso na previdência:
a) cobrança da dívida ativa de R$ 150 bilhões e que é ascendente;
b) renuncia fiscal, que poderá chegar a R$ 12 bilhões em 2003, maior do que todo o gasto com os sete milhões de aposentados e pensionistas rurais, que pouco contribuíram;
c) sonegação, elisão, evasão, brechas legais de 40% ao ano em relação à receita;
d) artifícios de redução consentida na receita de contribuição dos produtores rurais, da pequena empresa e da terceirização da mão-de-obra;
e) expansão do Simples e estímulo aos caloteiros através do Refis. Um simples choque de seriedade, fechando este monte de ralos, daria recursos ao INSS".
Tenho recebido informações diárias, via Internet, com números incontestáveis sobre o porquê de tudo - do chamado déficit previdenciário até a capitulação decepcionante dos novos gerentes. Qualquer um sabe, por que esse era o discurso que envolvia e produzia esperanças, que o maior vilão nessa história toda é o Tesouro, com a manipulação solerte dos dinheiros públicos.
Há uma diferença brutal entre a previdência do celetista, dos velhos tempos, e a do servidor público, criada há 12 anos. E isso quer dizer que dois terços dos atuais inativos nunca descontaram, porque até 1990 praticava-se o contrato integral, pelo qual o próprio erário assumia sozinho a aposentadoria.
Hoje, o servidor continua segundo condições constrangedoras e sem compensações do tipo fundo de garantia, mas o Estado só transfere para o orçamento da seguridade social o equivalente ao descontado do funcionário, o que é menos da metade do empregador privado. Estudo do auditor fiscal Rodrigo Pereira da Costa, do Rio Grande do Sul, é preciso:
"O governo não contribui para o sistema com cota patronal equivalente à que são obrigados os empresários. Na iniciativa privada, o trabalhador contribui com um percentual variável entre 7,65 e 11% sobre o teto atual de R$ 1.561,56 e as empresas entram em regra com mais 20% a título de FPAS (Fundo de Previdência e Assistência Social), 1 a 3% a título de Seguro de Acidente do Trabalho e 5,8% a título de contribuição para Terceiros (Sesc, Sesi, Senac, Incra etc.). A Previdência no serviço público era encarada como um ônus a ser suportado pelo governo, tal qual o pagamento de salários; e assim também o é em diversos países ao redor do mundo. Em 1992, o governo mudou o modelo e obrigou os servidores públicos a contribuírem para sua aposentadoria. Entretanto, o governo esqueceu-se de se obrigar também a recolher a cota patronal nos mesmos percentuais da iniciativa privada".
Finalmente, para deixar ainda mais claro o despreparo (no mínimo) de quem trata da matéria, vale citar trecho da contundente entrevista da senadora petista Heloísa Helena à "Veja": "Eu tenho muita raiva quando começam com essa conversa de rombo da Previdência, porque ela esconde uma sonegação do próprio governo, que não repassa para o sistema a sua contrapartida. E ainda desvia - de forma ilegal, imoral e oficial - recursos que deveriam ir para lá. Essa história de rombo é uma cantilena enfadonha e mentirosa".

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