A aposentadoria do servidor

Você já imaginou um general-de-exército se aposentar com os vencimentos de um sargento? Ou um ministro do Supremo se aposentando como oficial de justiça? Queiram ou não, esta é a lógica do regime previdenciário único, com o qual os novos governantes pretendem tratar as aposentadorias com a "reforma" que nem o subserviente FHC conseguiu implantar no dever de casa cobrado pelo FMI.
Você acha que estou exagerando na dose? Então, os generais não são servidores públicos militares remunerados pelo erário? Como seus colegas civis, eles têm uma relação direta com o Estado, e são submetidos a um estatuto rígido, que começa pelo concurso para ser contratado e observa uma série de normas e regulamentos constrangedores, ao contrário dos trabalhadores das empresas privadas.
Você também quer privatizar a relação entre o poder público e seus agentes? A equiparação proposta é isso, sem tirar nem pôr. Em vez de um contrato extensivo, pelo qual engloba como remuneração a mesma cobertura na inatividade, o Estado se tornaria um "patrão", como se auferisse também da mais valia, e se descartaria de seus "empregados" quando deixassem de "produzir". Os servidores, fossem civis ou militares, do Executivo, Legislativo ou Judiciário, seriam entregues à Previdência, no mesmo ritual dos celetistas.
A demagogia em alta
O dicionário Aurélio assim define a palavra demagogia:
"S. f. 1. Dominação ou preponderância das facções populares. 2. Conjunto de processos políticos hábeis tendentes a captar e utilizar, com objetivos menos lícitos, a excitação e as paixões populares. 3. Fam. Afetação ou simulação de modéstia, de pobreza, de humildade, de desprendimento, de tolerância, etc., com finalidade demagógica. 4. Pej. Demagogice".
A demagogia é o dínamo das democracias. Com a evolução da linguagem dos meios de comunicação, ela sofisticou-se.
Passou a ser manipulada pelos "marqueteiros" e, sob tratamento de laboratórios, tornou-se senhora absoluta dos corações e mentes das massas desavisadas. Segundo suas técnicas, os servidores públicos passaram a ser tratados como os vilões da Pátria. Os federais, há oito anos sem aumento, são levados ao pelourinho "como uma súcia de parasitas privilegiados, que vivem à custa do sacrifício do populacho espoliado".
O cidadão está crente que derrama seu suor, que vive no sufoco, porque "uma casta de sanguessugas, nadando em privilégios, se beneficia do seu sacrifício".
Como é preciso "fazer justiça", os manipuladores da opinião pública trabalharam com êxito a idéia de nivelar por baixo as aposentadorias. "Mas como? Se um empregado do setor privado tem um limite de R$ 1.561,66 no INSS, por que os servidores públicos mantêm os mesmos vencimentos na inatividade?"
Reféns das expectativas
Todo mundo devia saber que um servidor público ganha menos do que seus similares na iniciativa privada. Gilberto Gil chiou ao saber que um ministro ganha R$ 8.500,00, metade do que é pago a qualquer "executivo" de meia-tigela. Há profissionais com faculdade e outros títulos com vencimentos de R$ 400,00 no Rio de Janeiro. Os professores das escolas públicas ganham tão mal que espantam a clientela.
Os médicos, que salvam vidas diariamente nos prontos-socorros pressionados, precisam de correr de um lado para outro para ter uma renda digna. É verdade que os servidores estáveis têm possibilidades de progressão de vencimentos, segundo planos de carreira ou capacidade de mobilização pontual.
No Judiciário e no Legislativo, ganha-se melhor. Nas Forças Armadas, existem as promoções: um tenente pode chegar a general-de-exército, passando por capitão, major e coronel. Mas se não fosse assim, o que restaria ao servidor público, que acaba virando um refém de suas expectativas, de sua "estabilidade" e recusa propostas sedutoras das empresas privadas? Uma empresa paga ao seu empregado o que o patrão decide. Mesmo os contratos coletivos partem desse patamar.
Quando criada, a Previdência descontava menos e pagava mais. Na época dos IAPs, o teto era vinte salários mínimos. Os descontos também ficavam nessa faixa. Agora, o teto não está vinculado ao salário mínimo. Atualmente, equivale a 7,8 mínimos. Em conseqüência, os descontos estão limitados a R$ 171,77. Comparando: um servidor público que ganhe R$ 5.000,00 desconta R$ 550,00. O celetista com o mesmo salário fica nos R$ 171,77, porque só receberá de aposentadoria, na melhor das hipóteses, R$ 1.561,66.
Favorecendo área privada
Para entender a diferença estrutural entre serviço público e empresa privada é preciso atentar para o papel de cada um. Com certeza, não há semelhança entre ambos. Logo, não pode ser semelhante o regime de trabalho, muito menos seu contrato salarial. Querer dar o mesmo tratamento é pura e irresponsável demagogia. Ou, o que é pior, minimizar as funções do Estado soberano, sujeitando-o ao domínio de todo e qualquer interesse particular, o que institucionaliza de vez o ambiente de corrupção e promiscuidade.
É curioso ter que brandir o óbvio para uma turma que iludiu os servidores e os aposentados celetistas por duas décadas. O que se esperava era exatamente o contrário. O novo governo resgataria a dignidade da aposentadoria, com um tratamento de choque na sonegação e em fórmulas que facilitassem a adesão geral à Previdência Pública. Para você ter uma idéia, embora a mão-de-obra ativa no Brasil seja estimada em mais de 75 milhões de pessoas, menos de 30 milhões, entre os quais 6 milhões de servidores, descontam para aposentadorias. E o princípio basilar de sustentação dos inativos vinculados ao INSS é a proporcionalidade na relação com os contribuintes.
Na era FHC, introduziram-se alguns monstrengos e algumas armadilhas. Nada é mais insólito e indefensável do que escontar do próprio aposentado ou pensionista. Em compensação, pasmem, e nisso não fala, o governo federal abre mão de 12% do Imposto de Renda devido a quem pagar o equivalente a um plano de previdência privada. Na maior sem-cerimônia, o governo patrocina o desvio de arrecadação para estimular o sistema privado. Como acontece com as empresas de saúde em grupo.
A opinião pública está envenenada. O sistema assusta com informações sobre o déficit na Previdência, esquecendo dedizer que até estatais estão entre os seus devedores. Usa-se abusivamente a palavra privilégio. O cidadão comum absorve a informação fabricada e se enche de indignação.
Como a própria mídia embarca nessa ladainha torpe, como as lideranças sindicais são bisonhas ou comprometidas, atrás de suas próprias compensações pessoais, tudo indica que o governo que vendeu a imagem da defesa dos direitos do povo vai passar uma tremenda rasteira nos servidores civis e militares.
Resta saber quem pode partir para o jogo da verdade e mostrar que, se era para tal, que ficasse quem estava. Pelo menos, haveria alguém na oposição.

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